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História 2.0: O que é surpreendente sobre a próxima onda de narrativas

por dionei

Por Jonathan Gottschall

Fechando esta série de três partes (veja aqui a parte 1 e aqui a parte 2), Jonathan Gottschall discute o problema da interatividade e algumas verdades eternas sobre contar histórias.

Imagine o novelista James Joyce olhando a noite parisiense através da sua janela. Ele fuma como uma chaminé. Ele está tomando um pouco de cocaína medicinal para as suas doenças. Ele está ajustando as suas grossas lentes e está olhando as páginas do seu grande caderno de notas, rabiscando o Velório de Finnegan com um lápis de cera azul. Ele está rindo tanto das suas próprias piadas – seus trocadilhos, seus apartes lascivos – que sua muito sofrida esposa, Nora, grita com ele da cama para parar com isso, para que ela possa dormir um pouco.

O Velório de Finnegan foi um ato de bravata literária de tirar o fôlego. Tal como a pintura em tela de Jackson Pollack, Joyce queria despedaçar a gramática tradicional da sua forma de arte. Frustrado com as limitações da língua inglesa, ele inventou a sua própria língua, triturando palavras e pedaços de palavras de dúzias de diferentes línguas para formar um novo dialeto. Entediado com as ideias de enredos diretos e secos, Joyce acabou com o enredo quase completamente. E enquanto ele estava fazendo isso, ele demoliu também toda a noção de personagem. Os personagens de Joyce mudaram e se transformaram, mudando nomes, atributos de personalidade e traços físicos. James Joyce decidiu fazer algo tão antigo quanto a humanidade, o impulso de contar histórias, ficar novo.

Historias dois ponto zero II

Imagem: Usuário do Flickr Patrick Chondon

Joyce, quase cego, sem dentes e obcecado com a sua própria fama, trabalhou heroicamente no livro O Velório de Finnegan durante 17 anos, produzindo setecentas páginas que iriam, ele se gabava disso, manter os críticos literários ocupados por trezentos anos. E isso, ele provavelmente conseguiu. O livro é agora aclamado como um monumento à arte experimental, como uma das maiores novelas jamais escritas. De acordo com o crítico de Yale Harold Bloom, O Velório de Finnegan é o único trabalho de literatura moderna cuja genialidade é comparável à de Dante e à de Shakespeare.

Quando eu dou palestras sobre a ciência de contar histórias para plateias de homens de negócios, eu escuto sempre a seguinte pergunta: “Qual é a próxima novidade sobre histórias? Que novidade vai chegar e mudar tudo”? As minhas plateias parecem se preocupar, como fez Joyce, com o fato de que as formas antigas das histórias perderam um pouco da graça e o tempo está maduro para um pouco de destruição criativa. A revolução digital colocou um enorme número de novas e poderosas ferramentas à disposição dos contadores de histórias. E se a tecnologia revolucionou as nossas ferramentas, isso não deveria levar à revolução das próprias histórias? Este modo de pensar é resumido num evento anual chamado O Futuro de Contar Histórias, que pode também ser “Reinventando a forma de contar histórias”. Chegou a hora da História 2.0?

Imagem: Usuário do Flickr Sam Howzit

Imagem: Usuário do Flickr Sam Howzit

A interatividade parece ser o cálice sagrado. A ideia de uma classe criativa contando histórias a consumidores passivos vem desde 1995. Tudo no universo digital tem duas vias, interação e colaboração. Os consumidores da era digital querem interagir com as suas histórias – controla-las, responder a elas. Eles não querem histórias passando por eles como ondas, eles querem pular sobre as ondas e surfar nelas. Todo o ato de contar histórias não precisa necessariamente ir tão longe quanto os videogames – nos quais você é o personagem do filme e faz escolhas que determinam como ele acaba. Mas, é isto que se quer.

Antes de nos entusiasmarmos em demasia com a nossa ideia de reinventar a forma de contar histórias, vamos voltar a James Joyce. Há um paradoxo no livro O Velório de Finnegan. Este livro é conhecido como uma das maiores novelas que um ser humano jamais escreveu e também como uma das novelas que os seres humanos não aguentam ler. Eu sou um professor de literatura e nunca encontrei um só colega que tivesse lido o livro todo, ou que jamais tivesse tido vontade de fazer isto. O livro O Velório de Finnegan é simplesmente admirado pela sua coragem e ele é surpreendente, pela sua criatividade meio maluca, mas é quase completamente não lido e não amado.

James Joyce | From Finnegan’s Wake: “Margaritomancy! Hyacinthous pervinciveness! Flowers. A cloud. But Bruto and Cassio are ware only of trifid tongues the whispered wilfulness ('tis demonal!) and shadows shadows multiplicating (il folsoletto nel falsoletto col fazzolotto dal fuzzolezzo), totients quotients, they tackle their quarrel. Sickamoor’s so woful sally. Ancient’s aerger. And eachway bothwise glory signs. What if she love Sieger less though she leave Ruhm moan? That’s how our oxyggent has gotten ahold of half their world. Moving about in the free of the air and mixing with the ruck. Enter eller, either or.

James Joyce | From Finnegan’s Wake: “Margaritomancy! Hyacinthous pervinciveness! Flowers. A cloud. But Bruto and Cassio are ware only of trifid tongues the whispered wilfulness (‘tis demonal!) and shadows shadows multiplicating (il folsoletto nel falsoletto col fazzolotto dal fuzzolezzo), totients quotients, they tackle their quarrel. Sickamoor’s so woful sally. Ancient’s aerger. And eachway bothwise glory signs. What if she love Sieger less though she leave Ruhm moan? That’s how our oxyggent has gotten ahold of half their world. Moving about in the free of the air and mixing with the ruck. Enter eller, either or.

Os mestres contadores de histórias são mágicos que nos colocam em transe. Quando ficamos fascinados por uma história, nós nos esquecemos do nosso ambiente, à medida que as nossas mentes são transportadas para um universo alternativo (os psicólogos chamam este fenômeno de “transporte através de uma narrativa”). O problema do livro O Velório de Finnegan em se conectar com os leitores não é devido apenas à sua linguagem totalmente obscura (um crítico referiu-se à novela como um ato de “sodomia linguística”). É porque a novela – com a sua forma e enredo incompreensíveis, mudando personagens – não lança sobre os leitores um feitiço extasiante. Joyce nos nega o que mais queremos numa história: a sensação de entrar nas páginas de um livro e de nos perdermos numa terra de faz de conta.

Aqui está o problema com a interatividade: não há evidência de que as pessoas realmente a querem nas suas histórias. Ninguém assiste Mad Men (em português, Homens Loucos – série da TV americana) ou lê Gone Girl (em português, Garota que Foi) desejando ardentemente ter controle da história, à medida que ela se desenrola. A interação é precisamente o que a maioria de nós não quer quando uma história está sendo contada. Quanto maior for a nossa interação com a história, maior será necessário manter alerta a nossa mente, que está funcionando no mundo real. Nós não podemos alcançar o estado sonhador de transe, que constitui a alegria e o poder da nossa história. E quanto mais eu penso nisto, mais convencido eu fico que O Velório de Finnegan, por todo o seu esplendor como uma espécie de pintura impressionista, repele os leitores por causa da sua interatividade. A maioria dos críticos pensa que Joyce estava tentando sair do que ele chama de “linguagem que nos deixa completamente despertos”, para recriar o caos da vida dos sonhos. Paradoxalmente, entretanto, a mera dificuldade do livro O Velório de Finnegan força os leitores a manter um estado mental “amplamente desperto”, à medida que eles decifram o seu caminho através do texto. Eles não podem escorregar e cair no sonho acordado da história.

Imagem cortesia de AMC

Imagem cortesia de AMC

A história resiste ser reinventada. Como mostra o exemplo de O Velório de Finnegan, contar histórias não é algo que pode ser interminavelmente redesenhado. A história é como um círculo e, um círculo é um círculo. No momento que você começar a inquietar-se com a linha, você está criando um não círculo. Da mesma forma, a história somente funciona entre limites estreitos de possibilidades. Imagine o transporte através de uma narrativa, como essa poderosa capacidade do cérebro, protegida por um poderoso cadeado e que esse cadeado somente pode ser aberto por uma combinação específica. Desde que seres humanos existem, esta combinação para abrir o cadeado foi passada através de gerações de contadores de histórias. Voltando para as mais antigas formas de contos populares orais e seguindo adiante através das peças de teatro, até as novelas impressas e os modernos vídeos curtos do YouTube, contar histórias com sucesso não mudou nada.  Nos últimos 15 anos, talvez a novidade mais espetacular sobre histórias seja muito antiga. Eu estou falando do aparecimento dos grandes dramas da televisão a cabo, como os Sopranos, The Wire e Breaking Bad (todas são séries da TV americana, algumas delas mostradas pela nossa televisão, nos canais a cabo). Mas, não há nada novo sobre estas séries. Elas são apenas novelas muito boas, transferidas para as telas. (a tendência para o anti-herói alardeado pode ser nova nos dramas de TV, mas não é novidade na literatura) Quando se tratar de fundamentos da história, não há agora, e nunca haverá, algo novo sob o sol.

Compartilhando histórias.

Compartilhando histórias.

Para ver onde eu estou indo, olhe bem para esta famosa fotografia do animal contador de histórias em ação. Esta fotografia capta bosquímanos de Kung Sun compartilhando uma história em 1947. O contador de histórias está no centro, levantando os seus braços como um mágico atirando feitiços. Ele mantém a atenção da sua plateia, pele encostada na pele, mente ao lado de mente. Ele está ditando as imagens nas suas mentes e os sentimentos nos seus corações. Ele tem um poder enorme. E ele está fazendo isso com a ferramenta humana mais natural: a sua expressão facial e as suas mãos, a sua voz e a sua história. E hoje as coisas não mudaram muito. Há uma gramática antiga das histórias que abre o cadeado da nossa mente e nos proporciona a alegria das histórias. Um computador é um pouco como o tablet de argila do ano 3.000 AC, ou a impressora de 1450, uma tecnologia que está mudando radicalmente a maneira de consumir histórias, sem mudar os seus elementos fundamentais.

James Joyce certamente sabia contar histórias da maneira clássica (veja a sua imortal coleção de curtas histórias Dubliners). Como ele escreveu para um amigo, sobre O Velório de Finnegan, “eu poderia facilmente ter escrito esta história da maneira tradicional … (todo novelista conhece a receita) …, mas, afinal, eu estou tentando contar esta história de uma maneira diferente”. Joyce ficou genuinamente surpreso que tão poucas pessoas, tirando fora uma porção pequena de críticos altamente sofisticados, puderam conectar-se com a sua nova maneira de contar histórias. Ele realmente virou, como se queixou H. G Wells numa carta para ele, as suas costas para o homem comum.

Ao contar histórias no mundo dos negócios, conectar-se com o homem comum é o objetivo. E como eu argumentei nestas postagens, uma conexão de sucesso significa ater-se aos princípios de um bom contador de histórias e que estão codificados no DNA da nossa espécie e que não mudarão até que a natureza humana o faça.

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Sobre o autor: Jonathan Gottschall é o autor de The Storytelling Animal: How Stories Make Us Human (em português, O animal contador de histórias: como as histórias nos fazem ser humanos), publicado por Houghton Mifflin Harcourt. O seu trabalho tem aparecido, entre outros lugares, em New York Times Magazine, Scientific American, e The Chronicle of Higher Education.

Fonte: Fast Co.Create

Tradução e edição: Fernando B. T. Leite

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